Outro espaço de influência dessas práticas da magia era o dos sentimentos. Neste sentido, são muito interessantes os rituais destinados ao encantamento da pessoa amada: As palavras pronunciadas durante as missas quando da ocasião do levantamento da hóstia sagrada eram tidas como de grande poder quando ditas no rosto da pessoa com quem se estivesse dormindo ou durante o ato sexual. Outro exemplo é o caso das imagens de animais nessas práticas da magia: a analogia do asno com o homem pretendido: dava-se os miolos torrados e moídos do asno ao amante para que este pudesse comer ou beber. Em outro caso tão exótico quanto este assumia papel relevante as substâncias repelidas pelo corpo, sobretudo durante o ato sexual ou durante o período em que as mulheres encontravam-se menstruadas: o sangue da mulher era misturado no vinho ou na comida do amante para estreitar os vínculos sentimentais com a mulher. São inúmeros os exemplos de práticas mágicas destinadas aos mais variados fins de ordem sentimental.
A interpenetração entre o universo dos mortos e o dos vivos se constituía num outro aspecto privilegiado dessas práticas da magia. As feiticeiras invocavam os espíritos para saber do paradeiro das pessoas mortas, saber se elas encontravam-se, por exemplo, no purgatório. Aqui se dá a interpenetração de dois mundos: o espiritual e o mundo material. Trata-se de uma prática bastante audaciosa e ambígua. Audaciosa, pois as feiticeiras invocavam forças espirituais bastante imprevisíveis que poderiam ameaçá-la. Ambígua, uma vez que eram invocados santos e demônios durante esses rituais. Daí a necessidade de uma sacralização do espaço: A feiticeira devia tornar o espaço onde eram invocados os espíritos, espaços sagrados, para que ela própria pudesse se proteger da ação desses seres. O pentagrama - estrela de 5 pontas rodeada por um círculo - era um desses instrumentos utilizados pelas feiticeiras para sacralizar o espaço e manietar os espíritos.
Em História do Medo no Ocidente (1989), Jean Delumeau apresenta um relato sobre esse imaginário das práticas da magia na Bretanha:
Qualquer um que junte ervas, fora da noite da festa de São João, dizendo orações ou conjurações de qualquer espécie [...] peca mortalmente. invocar e nomear o diabo [...] para adivinhar ou para qualquer outra coisa é pecado mortal. Ter familiaridade com o inimigo ou fazer um acordo com ele ou um pacto qualquer é pecado mortal. Acreditar nos sonhos pondo fé neles, com orações, para saber as coisas por vir, ou ocultas é pecado mortal [...]. Observar as adivinhações que se fazem com 'arte' e inteligência vindas do Inimigo, pelo canto ou pelo vôo dos pássaros ou pelo andar dos animais, como faziam os antigos, é pecado mortal. Enfeitiçar ou conjurar uma coisa qualquer para adivinhar ou curar as doenças, como é (o caso) ou girar o tamis para para adivinhar coisas perdidas, curar com vime membros quebrados ou deslocados ou para outras coisas semelhantes é pecado mortal [...]. Qualquer um que ate a agulheta para colocar mal e malícia entre esposos, além de pecar mortalmente, não pode ser absolvido se antes não desata [...] Fazer algumas coisas com versículos de salmos para encontrar coisas perdidas, ou para enganar mulheres e moças, ou obter seu amor ou desposá-las peca mortalmente [...]. Qualquer um que queira cuidar da dor de dente por meio de um cravo invocado em nome de Deus peca mortalmente. (DELUMEAU, 1980, p. 375)
O relato de J. Delumeau é rico quanto às informações das crenças e práticas realizadas pelos que praticavam a feitiçaria, mostrando o universo dessas crenças e consequentemente o imaginário que se tinha delas. Por outro lado, percebe-se também os problemas que essas crenças representavam para o clero católico que procurava definir como práticas de heresia e de pecados mortais os feitiços e crenças acima expostos. Uma vez que os camponeses recorriam às feiticeiras e às suas práticas de magia para tentarem solucionar seus problemas cotidianos, despertavam a inveja e as preocupações do clero. Assim, as feiticeiras passaram a disputar com os clérigos a crença desses povos correndo os riscos acarretados pelos tribunais da Inquisição.
No entanto, a influência da feiticeira se fazia presente nas diversas camadas sociais: As camadas populares procuravam os serviços das feiticeiras por estes estarem próximos da realidade e das necessidades cotidianas. Contudo, as feiticeiras também circulavam nos espaços da corte, prestando seus serviços a pessoas de grande prestígio social. Nesse mundo hierarquizado - no qual os indivíduos se distribuíam na escala social de acordo com status herdados hereditariamente, uma vez que a sociedade medieval se constituía pelo caráter estamental, com uma nobreza de sangue - os serviços das feiticeiras eram fundamentais no imaginário tanto popular quanto das elites, para a obtenção de favorecimentos pessoais. Assim, as feiticeiras atuavam realizando feitiços que objetivavam beneficiar os membros das camadas populares e das elites no jogo das relações sociais.
Portanto, é nesse universo de crenças em poderes sobrenaturais exercidos pelos agentes da magia e, ao mesmo tempo, universo social bastante concreto, repleto de dramas e necessidades cotidianas das mais diversas, que a feiticeira foi adquirindo relevância como agente mediador do mundo espiritual e do mundo social concreto, intervindo nas realidades individual e social enquanto elemento minimizador dos problemas e das dificuldades humanas.
Referências:
BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia. Companhia das Letras, 2004.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.
THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia: Crenças Populares na Inglaterra: Séculos XVII - XVIII. Companhia das Letras. São Paulo, 1991.