quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Papel Social da Feiticeira no Início da Europa Moderna

Estudar o imaginário popular não é uma tarefa fácil para o historiador. Trata-se de tentar compreender o universo mental, os sentimentos, as imagens e as representações imaginárias que encontraram-se presentes no inconsciente/consciente coletivo de uma dada sociedade situada temporal e geograficamente. É possível a inteligibilidade no estudo dos sentimentos? Mensurar o sentimento de medo? É o que alguns historiadores como, por exemplo, Jean Delumeau, em seu livro História do Medo no Ocidente vem procurando demonstrar há alguns anos. Estudar o papel social da feiticeira no período aqui proposto é elaborar uma história do imaginário popular sobre a representação dessa personagem social, aparentemente tão ambígua, e de suas práticas de magia enquanto instrumentos de interesse social.
O imaginário popular na Europa Medieval e nos primórdios da Idade Moderna sempre esteve povoado por concepções místicas sobre o universo, por personagens sobrenaturais, por forças que atuam por meio de feitiços e práticas de magia. Esse universo mental é fruto de concepções teológicas da história e do Cosmo, que engendraram uma visão transcendental e apocalíptica da realidade social. 
É dentro desse contexto social que se deve situar a compreensão do papel social que as feiticeiras exerceram na Europa dos séculos XV e XVI. O universo era concebido como o palco das disputas entre seres transcendentais, entre anjos e demônios, entre Deus e o diabo, com seus respectivos agentes atuando nos espaços celestes e na Terra, sendo esta última um espaço intermediário entre o mundo superior e o mundo inferior. Se tomarmos como referencial o conjunto dos valores que formavam o sistema central da moral predominante da época, perceberemos que a feiticeira assumia aqui um estatuto de natureza ambígua ao constatarmos, por exemplo, que ela invocava ao mesmo tempo santos e demônios para a concretização dos seus objetivos. 
Contudo, não obstante esse caráter aparentemente dual das práticas exercidas pela feiticeira, ela desempenhava uma função social de extrema relevância nesse universo de concepções transcendentais: Através das práticas da adivinhação a feiticeira conhecia e revelava os destinos individuais e coletivos, adivinhava o paradeiro de pessoas e bens materiais desaparecidos;  com a utilização de protetores mágicos e amuletos, as feiticeiras proporcionavam uma proteção para o corpo dos indivíduos, lidando com a vida e a mortes deles; com práticas mágicas que permitiam o conhecimento das coisas ocultas, era possível  às curandeiras diagnosticar e curar as doenças - caso das curandeiras que viam na análise da água dos enfermos um instrumento de diagnóstico das enfermidades. Ao mesmo tempo que podiam curar, as feiticeiras também atuavam "contra" a vida, produzindo receitas destinadas à prática do aborto e a produção de amuletos que ajudavam a evitar a gravidez.
Outro espaço de influência dessas práticas da magia era o dos sentimentos. Neste sentido, são muito interessantes os rituais destinados ao encantamento da pessoa amada: As palavras pronunciadas durante as missas quando da ocasião do levantamento da hóstia sagrada eram tidas como de grande poder quando ditas no rosto da pessoa com quem se estivesse dormindo ou durante o ato sexual. Outro exemplo é o caso das imagens de animais nessas práticas da magia: a analogia do asno com o homem pretendido: dava-se os miolos torrados e moídos do asno ao amante para que este pudesse comer ou beber. Em outro caso tão exótico quanto este assumia papel relevante as substâncias repelidas pelo corpo, sobretudo durante o ato sexual ou durante o período em que as mulheres encontravam-se menstruadas: o sangue da mulher era misturado no vinho ou na comida do amante para estreitar os vínculos sentimentais com a mulher. São inúmeros os exemplos de práticas mágicas destinadas aos mais variados fins de ordem sentimental.
A interpenetração entre o universo dos mortos e o dos vivos se constituía num outro aspecto privilegiado dessas práticas da magia. As feiticeiras invocavam os espíritos para saber do paradeiro das pessoas mortas, saber se elas encontravam-se, por exemplo, no purgatório. Aqui se dá a interpenetração de dois mundos: o espiritual e o mundo material. Trata-se de uma prática bastante audaciosa e ambígua. Audaciosa, pois as feiticeiras invocavam forças espirituais bastante imprevisíveis que poderiam ameaçá-la. Ambígua, uma vez que eram invocados santos e demônios durante esses rituais. Daí a necessidade de uma sacralização do espaço: A feiticeira devia tornar o espaço onde eram invocados os espíritos, espaços sagrados, para que ela própria pudesse se proteger da ação desses seres. O pentagrama - estrela de 5 pontas rodeada por um círculo - era um desses instrumentos utilizados pelas feiticeiras para sacralizar o espaço e manietar os espíritos.
Em História do Medo no Ocidente (1989), Jean Delumeau apresenta um relato sobre esse imaginário das práticas da magia na Bretanha:
Qualquer um que junte ervas, fora da noite da festa de São João, dizendo orações ou conjurações de qualquer espécie [...] peca mortalmente. invocar e nomear o diabo [...] para adivinhar ou para qualquer outra coisa é pecado mortal. Ter familiaridade com o inimigo ou fazer um acordo com ele ou um pacto qualquer é pecado mortal. Acreditar nos sonhos pondo fé neles, com orações, para saber as coisas por vir, ou ocultas é pecado mortal [...]. Observar as adivinhações que se fazem com 'arte' e inteligência vindas do Inimigo, pelo canto ou pelo vôo dos pássaros ou pelo andar dos animais, como faziam os antigos, é pecado mortal. Enfeitiçar ou conjurar uma coisa qualquer para adivinhar ou curar as doenças, como é (o caso) ou girar o tamis para para adivinhar coisas perdidas, curar com vime membros quebrados ou deslocados ou para outras coisas semelhantes é pecado mortal [...]. Qualquer um que ate a agulheta para colocar mal e malícia entre esposos, além de pecar mortalmente, não pode ser absolvido se antes não desata [...] Fazer algumas coisas com versículos de salmos para encontrar coisas perdidas, ou para enganar mulheres e moças, ou obter seu amor ou desposá-las peca mortalmente [...]. Qualquer um que queira cuidar da dor de dente por meio de um cravo invocado em nome de Deus peca mortalmente. (DELUMEAU, 1980, p. 375)
O relato de J. Delumeau é rico quanto às informações das crenças e práticas realizadas pelos que praticavam a feitiçaria, mostrando o universo dessas crenças e consequentemente o imaginário que se tinha delas. Por outro lado, percebe-se também os problemas que essas crenças representavam para o clero católico que procurava definir como práticas de heresia e de pecados mortais os feitiços e crenças acima expostos. Uma vez que os camponeses recorriam às feiticeiras e às suas práticas de magia para tentarem solucionar seus problemas cotidianos, despertavam a inveja e as preocupações do clero. Assim, as feiticeiras passaram a disputar com os clérigos a crença desses povos correndo os riscos acarretados pelos tribunais da Inquisição.
No entanto, a influência da feiticeira se fazia presente nas diversas camadas sociais: As camadas populares procuravam os serviços das feiticeiras por estes estarem próximos da realidade e das necessidades cotidianas. Contudo, as feiticeiras também circulavam nos espaços da corte, prestando seus serviços a pessoas de grande prestígio social. Nesse mundo hierarquizado - no qual os indivíduos se distribuíam na escala social de acordo com status herdados hereditariamente, uma vez que a sociedade medieval se constituía pelo caráter estamental, com uma nobreza de sangue - os serviços das feiticeiras eram fundamentais no imaginário tanto popular quanto das elites, para a obtenção de favorecimentos pessoais. Assim, as feiticeiras atuavam realizando feitiços que objetivavam beneficiar os membros das camadas populares e das elites no jogo das relações sociais.
Portanto, é nesse universo de crenças em poderes sobrenaturais exercidos pelos agentes da magia e, ao mesmo tempo, universo social bastante concreto, repleto de dramas e necessidades cotidianas das mais diversas, que a feiticeira foi adquirindo relevância como agente mediador do mundo espiritual e do mundo social concreto, intervindo nas realidades individual e social enquanto elemento minimizador dos problemas e das dificuldades humanas.

Referências:


BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia. Companhia das Letras, 2004.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.

THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia: Crenças Populares na Inglaterra: Séculos XVII - XVIII. Companhia das Letras. São Paulo, 1991.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

A Relação Saber/Poder e Sexualidade: O Auto-Erotismo Infantil (Séculos XVIII-XIX)

Com a ampliação e a diversidade dos objetos de estudo no horizonte da historiografia, temas como o do auto-erotismo infantil que, a princípio, poderia causar estranheza, vem sendo incorporado às pesquisas no âmbito das ciências humanas, inserindo-se na produção historiográfica dedicada à história da sexualidade. O estudo do auto-erotismo infantil foi escolhido aqui por dois motivos. Primeiro, por se tratar de uma temática que ainda causa polêmica e espanto; permitindo, portanto, caminhar por um terreno movediço e por isso mesmo bastante interessante. O segundo e principal motivo é a possibilidade que essa temática oferece de analisar a relação de poder exercida sobre a sexualidade através de toda uma produção de um saber/discurso dirigido a essa sexualidade.

O auto-erotismo infantil (Ou a prática da masturbação entre as crianças) surgiu de forma frequente entre o fim do setecentos e o início do oitocentos, tendo como seu ponto de emergência o espaço familiar, da família/célula, no espaço cada vez mais estreito das relações entre pais e filhos. O corpo dessa criança masturbadora se tornará o ponto de aplicação de uma distribuição dos poderes que investem sobre o corpo dos indivíduos a partir do final do século XVIII, através de um saber que nasce lentamente e que vai se constituindo em técnicas de normalização dos comportamentos, em técnicas de educação coletiva, técnicas pedagógicas e de formação de aptidões, que ao longo do século XIX vai adquirindo um estatuto de cientificidade.

São diversas as publicações de livros, textos, panfletos, etc. que se constituem em discursos sobre o auto-erotismo infantil e que se destinam aos pais, mas também às crianças e aos adolescentes. Trata-se de um discurso que procura apresentar todas as consequências nefastas da masturbação, pintando um quadro das crianças afetadas por esse vício como sendo crianças debilitadas fisicamente, esqueléticas, com uma fisionomia devastada; enfim, o corpo da criança masturbadora se torna o espaço no qual a morte se encontra presente. Desta forma, vemos se produzir toda uma campanha de combate a essa sexualidade infantil comportando instituições destinadas ao tratamento e à cura dos masturbadores, bem como o apelo de médicos que prometem aos pais a cura de seus filhos do vicio da masturbação.

Contudo, não se trata de uma campanha contra a sexualidade em si, mas de uma campanha destinada de forma específica ao combate à masturbação infantil. Não se trata de uma campanha com fins meramente moralizantes, mas de uma campanha que procura patologizar a masturbação, descrever os problemas de saúde que podem decorrer dessa prática, os sintomas que ela pode apresentar na fisionomia dos indivíduos. A masturbação infantil passa a ser apresentada como uma atividade que leva ao esgotamento do organismo e causadora de todas as doenças possíveis que podem se desencadear tanto na infância quanto na velhice. Essa somatização da masturbação na infância é o que Michel Foucault chama de "potência causal inesgotável da sexualidade infantil" (In.: Os Anormais, 2002, p. 305). Dá-se o que Foucault define como autopatologização, através da interpenetração entra a prática do auto-erotismo e a responsabilidade patológica da criança que pratica a masturbação. A criança torna-se responsável pelas patologias que vão surgindo em seu corpo em decorrência da descoberta do auto-erotismo.

Quanto às causas da masturbação infantil, o discurso médico do período aqui estudado (séculos XVIII - XIX) aponta como a causalidade mais frequente a sedução do adulto  - O perigo vem, portanto, do exterior. A criança é responsabilizada pelas doenças que aparecem em seu corpo como sintomas da masturbação, mas não é culpabilizada. A culpa ou a causa não deve ser procurada na criança, mas no exterior, nos acidentes ou nos agentes externos. Assim, o discurso médico orientado a campanha anti-erótica procurou precaver os pais em relação aos agentes intermediários que circulam no espaço familiar: a criadagem, os tios, os primos; porém, acima de tudo, esse discurso médico diz aos pais: desconfiem antes de tudo das crianças. Uma vez que era às crianças mais velhas que as criancinhas eram confiadas, esse discurso sobre o auto-erotismo infantil, esse discurso sobre o corpo, sobre a relação do indivíduo com seu próprio corpo, esse discurso normalizador dos comportamentos sociais, discurso de perseguição às anomalias sexuais, aos desvios sexuais,  situa nas crianças que já haviam passado da fase da puberdade uma fonte de perigo e de influência erótica às crianças pré-púberes.

Como podemos perceber, esse discurso do saber médico exercerá um efeito de saber/poder na relação das crianças com seu próprio corpo, tendo como instrumento mais direto da ação desse saber, como agentes imediatos da aplicação das prescrições médico-comportamentais, a figura dos pais. Se possível, os pais deverão eliminar do espaço familiar todos os agentes externos intermediários que circulam nesse espaço, tornando esse espaço familiar um espaço de permanente vigilância, estreitando os laços de proximidade dos pais com seus filhos. Ocorrerá toda uma reorganização do espaço familiar para torná-lo um "espaço asséptico"(expressão utilizada por Foucault ibid., p. 311). "A relação dos pais com os filhos, que está se solidificando assim numa espécie de unidade sexual corporal, deve ser homogênea à relação médico-doente; ela deve prolongar a relação médico-doente"(Ibid., p. 317).

O corpo da criança torna-se, assim, objeto de permanente investigação. Corpo que fala, que deve ser lido, que apresenta os sinais da masturbação, corpo que sofrerá as permanentes investidas da vigilância dos pais na perseguição ao auto-erotismo infantil. Como dito a pouco, o espaço familiar também será alvo de uma reorganização para uma vigilância contínua: Os pais deverão seguir todo um conjunto de prescrições para identificar os sinais no corpo e no ambiente da criança: "Que sua vigilância se volte principalmente para os instantes que sucedem o deitar e precedem o levantar; é principalmente então que o masturbador deve ser pego em flagrante. Nunca suas mãos estão fora da cama, e geralmente ele gosta de ficar com a cabeça debaixo do cobertor. Mal deita, parece mergulhado num sono profundo...Descubram então bruscamente o rapaz, encontrem suas mãos, se ele não teve tempo de mudá-las de lugar, nos órgãos de que ele abusa, ou na vizinhança destes. Também poderão encontrar o pênis em ereção, ou até mesmo vestígios de uma polução recente: esta poderia também ser reconhecida pelo cheiro especial que vem da cama, ou com que os dedos dele estão impregnados" (Ibid., p. 312).

É, portanto, a partir desse estreitamento dos laços de aproximação dessa família afetiva (família burguesa - Foucault esboça as diferenciações de tratamento e de prescrições desses discursos em torno da sexualidade da família burguesa, que está sendo estudada aqui, e da família operária), dessa família-célula, família corporal, que se dará o ponto de aplicação desses discursos do saber médico. Identificados os vestígios da prática da masturbação, a criança deve ser entregue aos médicos - únicos depositários desse segredo, os únicos aos quais a criança deve revelar sua sexualidade. À família cabe a vigilância e ao discurso médico cabe a tarefa de fazer a sexualidade falar. Foucault apresenta dois motivos, dois grandes vetores para essas preocupações em torno da sexualidade das crianças: De um lado, pedir às familias que cuidem dos seus filhos, porque as crianças devem viver e não morrer; por outro lado, o interesse político e econômico do Estado em relação às crianças: O Estado quer desenvolver aptidões nas crianças para a atividade político-econômica e não quer que o investimento das famílias na educação e formação de seus filhos se torne um esforço inútil devido à morte precoce dessas crianças como decorrência da prática da masturbação.

Concluindo, vemos a sexualidade infantil emergir como objeto de todo um discurso normalizador dos comportamentos sexuais, com o corpo da criança sendo o ponto de aplicação desse saber com seus efeitos de poder, dizendo a forma como esses indivíduos podem/devem se relacionar com seu próprio corpo. São as chamadas técnicas positivas de poder, que não apenas (ou principalmente) reprimem, mas produzem saberes, produzem efeitos de verdade, se capilarizam no corpo social com seus efeitos de poder. São as novas técnicas de gestão populacional que irão emergir a partir de fins do século XVIII, com toda sua economia de poder. A temática da sexualidade infantil foi escolhida aqui apenas como um meio para se estudar essa relação saber/poder tão valorizada por Foucault em suas pesquisas, uma vez que para o nosso filósofo francês todo saber produz poder e todo poder produz saberes.

 

  

terça-feira, 21 de junho de 2011

A DEMOCRACIA BRASILEIRA

Na Antiguidade Clássica, o chamado mundo helênico - helênico vem da palavra hélade, utilizada para designar o conjunto do povo grego espalhado pelo Mediterrâneo - era constituído por cidades que se auto-governavam, eram as cidades-estados, conhecidas como pólis gregas. A condição fundamental para uma cidade ser considerada uma pólis era a independência política - o auto-governo. Cada pólis possuía seu sistema de governo, mas o sistema político conhecido por democracia é uma herança da pólis ateniense.   

A democracia como forma de participação direta da população na gestão da chamada coisa pública - res (coisa) pública (do povo) = república - surgiu na cidade de Atenas e vigorou entre os cidadãos atenienses ao longo dos séculos V e IV a.C, passando por algumas modificações no decorrer desse período. Para participar desse sistema político era necessário ser cidadão ateniense com idade acima dos 18 anos, sendo excluídos da participação nas decisões políticas as crianças, as mulheres, os escravos e os estrangeiros, os quais não possuíam status de cidadania. 

Todos cidadãos eram iguais perante a Lei e tinham o direito não apenas de votar as matérias apresentadas para deliberação, mas também usufruíam do direito de expressar seu ponto de vista e tentar convencer outros cidadãos a votarem com ele. O ajuntamento ou assembléia dos cidadãos atenienses, conhecido como a ekklesia, era formado para discutir e decidir as questões que eram propostas para a gestão da cidade de Atenas, sendo também dever dessa assembléia fiscalizar o cumprimento das decisões por parte dos oficiais do governo. 

O que é importante notar é essa característica peculiar da democracia ateniense que a diferencia dos sistemas  democráticos de governo contemporâneos. Trata-se da participação política de forma direta, da participação popular na gestão da pólis ateniense, diferindo das democracias contemporâneas caracterizadas pela representatividade, pelo caráter indireto da participação popular. 

A palavra democracia - demo (povo) cracia (krátos = poder, força, autoridade) - designa o sistema político cujo poder pertencer ao povo, à grande massa da população, sendo um sistema de governo democrático aquele cujo poder emana do povo.  A democracia é o governo do povo, feito pelo povo e para o povo.  Num regime político democrático o que prevalece, na falta de consenso, é a vontade da maioria, por isso se conceitua a democracia como o governo de muitos. No caso da democracia grega, embora o conceito de cidadão limitasse bastante o número de pessoas que tinham o direito de exercer a atividade política, esse direito não era limitado pela condição econômica dos indivíduos, como ocorre num sistema oligárquico, devendo-se compreender apenas o conceito de povo na concepção ateniense. Contudo, não é do propósito deste texto aprofundar a discussão em torno dessa problemática.

No Brasil, o sistema político foi construído sobre as bases dos interesses dos grupos oligárquicos que foram se formando ao longo da trajetória política brasileira, sob o signo da violência, da escravidão, da exclusão social, do genocídio, da apropriação privada do poder de punir e da forte concentração de renda e das terras brasileiras nas mãos dos grupos de poder dominantes. Com o fim da Era Vargas (1930 - 1945), inicia-se no Brasil a chamada República Liberal que durará até o golpe de 64. A República Liberal levou o país a um processo de experiências democratizantes, com o combate à corrupção e às fraudes políticas que ocorriam nos processos eleitorais. Obviamente, não se trata de uma experiência democrática plena, mas de um processo de democratização que só será interrompido com o golpe de Estado que instaurará o regime ditatorial no Brasil. Uma prática política ganhou grande vulto no Brasil durante esse período, o Populismo caracterizou a cultura política brasileira durante a República Liberal, levando a classe política a disputar de maneira mais acirrada os votos da população.

Com o esfacelamento dos currais eleitorais nos moldes tradicionais, com o fim do chamado voto de cabresto, com a implantação do voto secreto e com a paulatina melhoria da fiscalização dos processos eleitorais, tornava-se cada vez mais necessária a aproximação entre a classe política brasileira e a massa da população, o voto passou a ser mais disputado e mais caro de ser comprado. O discurso político incorporava os interesses das camadas populares, conquistando a adesão da população que passava a fornecer base de apóio eleitoral aos políticos cujo discurso estivesse alinhado aos interesses do povo.

Com o golpe militar de 1964, esse processo democratizante é interrompido, mergulhando o país num longo período de autoritarismo, de cassação dos direitos políticos, de repressão e censura. Com o processo de redemocratização do Brasil a partir do término do regime militar, ocorre o retorno da consolidação da democracia brasileira. A questão aqui é discutir essa democracia, esse sistema que talvez esteja ainda na infância no cenário político brasileiro, em vias de maturação e consolidação. Embora se possa afirmar a consolidação das instituições políticas brasileiras em suas três esferas de poder - Executivo, Legislativo e Judiciário - a questão é a problemática da representatividade política da população. Problematizando a questão, como se pode falar em sistema democrático de governo em um país que possui uma das maiores concentrações de renda no mundo, com acentuada desigualdade social e concentração de terras - herança de séculos de formação e consolidação de uma estrutura agrária fundamentada no latifúndio?

Embora as instituições políticas no Brasil estejam fortalecidas, elas vivenciam uma situação de descrédito por parte da população, crise gerada por escândalos de corrupção em todas as esferas de poder, crimes de colarinho branco que via de regra ficam impunes, "representantes" políticos que não realizam as reformas necessárias para procurar de forma mais consistente promover uma transformação social, política e econômica profunda no Brasil. O corporativismo dentro das instituições públicas brasileiras é outro fator que leva a classe política a permanecer leal a seus pares às expensas da traição dos verdadeiros princípios democráticos e dos interesses do povo brasileiro.

Uma das grandes armadilhas da democracia moderna: seu caráter indireto, "representativo". Já advertia o filósofo Jean-Jacques Rousseau (séc. XVIII), que o poder (a soberania) é intransferível. Segundo Rousseau, os governantes são agentes da vontade soberana do povo, não são se quer representantes dessa vontade, apenas executores da decisão popular. A vontade do povo jamais pode ser alienada ou representada, apenas executada.

As bases do sistema político brasileiro estão assentadas nos interesses dos grupos dominantes, daqueles em cujas mãos encontra-se o poder econômico e, por consequência, o poder das decisões políticas. Não interessa se o presidente da república seja de um partido de esquerda ou de direita, terá sempre que se curvar diante do sistema que aí se encontra estabelecido. São as regras do jogo. Onde está a tão necessária reforma tributária, para aliviar o fardo do povo brasileiro tão castigado e explorado com os pesados impostos? Por qual motivo o setor financeiro vem sendo o que mais lucra no Brasil às custas do pagamento dos juros da dívida pública - para se ter uma idéia, o orçamento previsto para investimento no país em 2011 é de cerca de R$ 20 bilhões, enquanto esse mesmo setor público irá pagar apenas de juros aos bancos em 2011 mais de R$ 230 bilhões - e os juros continuam aumentando - (fonte p/ pesquisa: Valor Econômico) ? É a farra com o dinheiro público - do povo. É o que se poderia chamar de Bolsa Banqueiro, bem mais predatório que o Bolsa Família. Onde está a representatividade política dos interesses do povo?

A participação política do povo brasileiro começa e termina nos períodos eleitorais, nossa "democracia" se limita a permitir que a população escolha seus candidatos. Dali pra frente o destino da nação está fora do controle, da fiscalização e até na contramão da vontade popular. Como alguém disse certa vez: o povo brasileiro jaz anestesiado na mesa de cirurgia - sem reação! A democracia brasileira seria uma ilusão, uma demagogia ou estaria mesmo em vias de consolidação? Seria preciso acabar com essa idéia de que poderemos mudar o país nas urnas? Além das urnas existe toda uma estrutura de relações de poder que emperra a soberania da vontade popular e que não se encontra confinada no interior das instituições políticas, mas que mantém laços de interesses estreitos com elas.

É preciso modificar a concepção de democracia no Brasil, pensar a democracia num sentido mais amplo e repensar nossa idéia de representatividade política. Necessário será questionar as propagandas demagógicas de que o Brasil é um país de todos. Questionar nosso sistema de governo "democrático" e desconstruir os discursos que ludibriam a população com a idéia de que o destino do Brasil está nas urnas. É a velha, mas prazerosa atividade filosófica (para concluir com outra herança grega: a Filosofia): questionar e desconstruir os discursos, os efeitos de verdade que tentam exercer sobre nós...    

 






   

 


sexta-feira, 10 de junho de 2011

Bolsa Família

Desnecessário é enfatizar que quando se fala no programa Bolsa Família, inúmeras são as polêmicas e acirramento dos ânimos daqueles que se colocam contra ou a favor desse programa condicionado de transferência direta de renda promovido pelo governo federal. O objetivo deste artigo não é defender ou criticar esse programa social, mas apontar algumas alternativas que podem ser vislumbradas no horizonte das ações governamentais que poderão contribuir para a emancipação dos beneficiados em relação à dependência do benefício.

As últimas eleições de 2010 foram um prato cheio para aqueles que se interessam por estudar o comportamento dos políticos brasileiros em relação ao Bolsa Família. O programa social pôde, como nunca, mostrar sua face eleitoreira, com a promessa de alguns políticos – que estavam pela hora da morte devido às acusações e escândalos de corrupção – de defenderem o pagamento do 13° do Bolsa Família. Como diz o ditado: “Seria cômico se não fosse trágico”. O horário eleitoral estava repleto de apelos utilizando o programa social como instrumento de manipulação da vontade dos eleitores. As eleições de 2010 mostraram a força política que o Bolsa família pode fornecer à classe política brasileira. Nas regiões Norte e Nordeste do Brasil – regiões mais beneficiadas com o programa social - a grande vitória da presidenta Dilma Rousseff (PT) é um exemplo claro da força que o programa possui quando se trata de um(a) candidato(a) de um governo de caneta cheia e que contribuiu bastante para a ampliação do número de beneficiados e do valor do benefício.

Por outro lado, não podemos tratar de maneira vulgar e reducionista esse programa social focalizando seu impacto social apenas do ponto de vista do jogo famigerado dos interesses da classe política brasileira. O Bolsa Família é um programa social reconhecido internacionalmente. De acordo com um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Abril de 2010, avaliando o desempenho de 189 nações, as quais assinaram, no ano de 2000, os Objetivos do Milênio, o Brasil conseguiu superar as metas estabelecidas no item “Combate à Pobreza”. Isso só foi possível graças ao polêmico programa social que juntamente com o aumento da renda dos trabalhadores brasileiros ajudou a elevar cerca 29 milhões de brasileiros à classe média entre os anos de 2003 e 2009 – De acordo com o estudo apresentado pela FGV, em 2010.

De acordo com uma pesquisa publicada pelo IBGE, em novembro de 2010, o programa Bolsa Família foi o principal responsável pela redução do número de brasileiros que viviam em risco grave de fome. Segundo essa pesquisa, apenas 65,8% dos brasileiros encontravam-se em situação de segurança alimentar no ano de 2009, enquanto 34,2% encontravam-se em condição de insegurança alimentar, ou seja, corriam o risco iminente de não ter o que comer ou sofriam restrições alimentares por falta de recursos. Na primeira vez em que essa pesquisa foi publicada, apresentando dados referentes ao ano de 2004, o número de brasileiros que passavam fome era de 14,9 milhões. Em 2009, esse número foi reduzido para 11,2 milhões de pessoas, havendo, portanto, uma redução de 3,7 milhões de pessoas que se encontravam vivendo em risco grave de fome, o que representa uma queda de 24,8% em comparação com o ano de 2004.

Atualmente, quase 13 milhões de famílias são beneficiadas pelo Bolsa Família, recebendo benefícios que variam de R$ 32,00 a R$ 242,00, considerando-se a renda mensal das famílias por pessoa e o número de crianças e adolescentes com idade de até 17 anos. O orçamento atual destinado ao programa é de cerca de R$ 15,5 bilhões para o ano de 2011.

A presidenta Dilma apresentou a erradicação da pobreza como a grande meta do seu governo. Contudo, a emancipação dos milhões de brasileiros que dependem de programas governamentais de caráter assistencialista é condição indispensável para uma vida digna.

Desta forma, algumas medidas estão sendo adotadas e poderão contribuir para a emancipação das famílias que dependem da assistência governamental. O primeiro grande passo para a erradicação da pobreza no Brasil se encontra no acesso à educação; neste sentido, a contrapartida exigida pelo governo federal de fazer com que as famílias que recebem o benefício mantenham suas crianças freqüentando as escolas é um passo de extrema relevância para fazer com que essas futuras gerações possam ter uma alternativa de vida mais digna. Contudo, o acesso à educação formal não se restringe às crianças pertencentes a essas famílias, estendendo-se também aos adultos. Segundo alguns dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o analfabetismo entre as famílias beneficiadas com o programa Bolsa Família caiu de 17% para 13%, entre os anos de 2007 e 2009.

No entanto, um programa anunciado pelo governo federal chama a atenção. Trata-se do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), que tem como principal objetivo resolver o problema da falta de mão-de-obra qualificada no país, atuando principalmente na formação de profissionais para as áreas de serviço, construção civil e de tecnologia da informação. O programa prevê a inclusão dos beneficiados com o programa Bolsa Família, os quais poderão se qualificar em um dos vários estabelecimentos e sistemas de ensino que serão abrangidos pelo Pronatec, como os institutos federais de ensino técnico, a rede do chamado sistema S (Senac, Senai, etc.) e as escolas estaduais que serão destinadas ao atendimento do programa.

O Bolsa Família há muito vem sendo criticado por não oferecer aos beneficiados possibilidades de saída da dependência do benefício, perpetuando essa dependência e envolvendo as famílias beneficiadas num circulo vicioso em torno do benefício, levando-as a permanecerem debaixo das asas da galinha do governo federal. Portanto, programas como o Pronatec e outros investimentos na área da educação técnica e superior (a exemplo do ProUni) destinados a pessoas de baixa renda, bem como programas de geração de emprego e renda para a formação de pequenos empreendedores - a exemplo do programa Empreender adotado pela prefeitura municipal de João Pessoa (PB), tendo como objetivo manter uma rede permanente de crédito e capacitação dos interessados (capacitação realizada através do SEBRAE/PB) estabelecendo uma grande parceria com os pequenos empreendedores e promovendo a inclusão social através da geração de emprego e renda. O projeto Empreender foi adotado pelo governo do estado da Paraíba e será estendido aos demais municípios do estado, com um orçamento previsto em R$ 17 milhões para este ano - são instrumentos bastante positivos que, se levados adiante, produzirão grandes resultados no combate à pobreza e à miséria no Brasil.

Esses programas são fundamentais para fornecer alternativas às famílias que dependem do Bolsa Família, uma vez que sem esses programas complementares é praticamente impossível extinguir o assistencialismo promovido por programas como o Bolsa Família e a conseqüente emancipação e inclusão social digna das famílias que recebem os benefícios do programa.

sexta-feira, 2 de julho de 2010